Todas as coisas têm o seu mistério
e a poesia
é
o mistério de todas as coisas
Federico García Lorca
Sendo este um BLOG DE MARÉS, a inconstância delas reflectirá a intranquilidade do mundo.
Ficar-nos-á este imperativo de respirar o ar em grandes golfadas.
março 27, 2009
litania da crise
a crise cruza a crise acrisolada uma crise em cruz um ai Jesus coberta de capuz crucificada crise do crash do cash cheirando a peixe atrasada crise p’ra pobre que cobre de camisa esburacada a crise do rico que sofre frente a lagosta suada crise de ter e de haver ou de ter só p’ra comer restos de crise e mais nada crise de ter e de ter e de ter mais e subir sobre a montanha de corpos meios vivos meios mortos até já não ter onde ir ficar p’ra trás e cair e ser degrau dessa escada
e ali ao lado a crescer basta só querermos ver outra vontade outra estrada
O fim de semana com poemas começou cedo, aí por quinta-feira, nas Noites Com Poemas, com Ernesto Matos e com Pedro Miranda de Albuquerque, e com Cabo Verde por tema, pela Biblioteca Municipal de São Domingos de Rana.
Os autores tiveram artes de nos convencer de quão africanos podemos sentir-nos, sem esforço e sem preconceito, mas tão só por algo indizível que nos habita, nos está entranhado, e que basta saber deixar fluir.
Depois, na sexta-feira, foi noite de Palavras Andarilhas e de transmissão de testemunho da Estafeta de Contos - que leva já onze anos de correrias -, sessão que teve lugar também na Biblioteca de São Domingos de Rana.
Helena Xavier, responsável pela Divisão das Bibliotecas, e Ana Clara Justino, vereadora da Cultura de Cascais, anunciaram o evento.
Sábado, pelas Caldas da Rainha, espreitando a inspiração lançada às paredes interiores de uma velha casa, habitada por estudantes da ESAD...
... onde a subversão do quotidiano pode dançar entre o tamanho de um sorriso que uma ironia desvenda...
... ou uma pieguice madura, assumida de corpo e alma.
Apurar, também, que os grafitis podem ter um sentido e um espaço, sem que tal signifique constrangimento.
Desvendar também o grito do nosso patrimonio arquitectónico maltratado, desbaratado, e tudo isso sem sentido...
E, depois, o sentido que um grupo de jovens transmitiu através de pinturas efémeras, que inundaram as Caldas da Rainha, em homenagem aos trabalhadores da Fábrica Bordalo Pinheiro, com primaveris andorinhas a tanto quererem anunciar outras Primaveras.
Haja quem os ouça, neste País onde a surdez impera.
O (meu) prato forte centrava-se, entretanto, na sessão do Dia Mundial da Poesia, com homenagens a Jorge de Sena e a Ary dos Santos, na Biblioteca Municipal das Caldas da Rainha, e organização da Comunidade de Leitores.
Os Jograis Frei Cristóvão, ensaiados pela professora Isabel Sá Lopes, iniciaram a sessão.
A Comunidade de Leitores, na pessoa de Palmira Gaspar, apresenta o professor e escritor Fernando Martinho (à direita), que disserta, com saber e paixão, sobre a vida e a obra de Jorge de Sena.
A ambição do programa teve de ser gerida com cuidados que permitissem a participação de quantos o integravam...
Isabel Gouveia dá-nos testemunho, vivo e conclusivo, do que é uma vida dedicada à poesia...
... enquanto Isabel Sá Lopes nos inunda com a sua torrente tumultosa de lucidez.
Pedro Laranjeira assume com quantas palavras ditas se faz - ou refaz - um poema, onde o cunho interpretativo lhe empresta outra cor.
E Carlos Gaspar nos dá conta da sua descoberta do Corvo, de Edgar Allan Poe, traduzido por Fernando Pessoa.
Os Jograis do Canto Sénior emprestam outra noção de equipa e partilha ao exercício da poesia dita...
E Carlos Mascarenhas homenageia, em boa hora, o mestre Lagoa Henriques, contra ventos intempestivos de esquecimento irracional e irrazoável.
Pedro Laranjeira volta à liça, transmitindo-nos o seu conhecimento pessoal de Ary dos Santos e o deslumbramento da sua riqueza, ainda que conflituosa, enquanto ser humano e poeta. Conflito que nascia e crescia, antes de mais, dentro do prório Ary dos Santos...
António Ferreira brinda-nos com uma sequência coreografada de ioga, a pretexto da Estrela da Tarde, de Ary dos Santos, interpretada por Carlos do Carmo.
O exemplo do poeta e a força das suas palavras foi, claramente, inspirador!
No tempo dedicado à participação de elementos da assistência houve quem soubesse deslumbrar-nos com notáveis e saborosos exemplos de improviso.
Espera-se, como sempre, que o exemplo floresça e frutifique, e que provoque sementeiras de novos poemas.
Hoje, antecipando o dia de amanhã, a transmissão de testemunho na Estafeta de Contos, das Palavras Andarilhas, na Biblioteca Municipal de Cascais, em São Domingos de Rana, pelas 21 horas. Ajudarei à festa... Quem puder ir e não for, vai arrepender-se, garanto.
Orgulho, vaidade... o que quiserem. Certo é que conto já por oito o número de convites para participar nalgum evento, amanhã, em volta do Dia Mundial da Poesia.
Muito mais do que isso possa representar em termos pessoais, interessa saber que, afinal, o País se desdobra em eventos de índole cultural, preenchidos com gente de corpo e alma, ainda que tal ocorra longe - e, possivelmente, ainda bem que assim é - dos chamados meios de comunicação de largo espectro. Mas este é o País que conta. É o País com que eu quero contar.
Neste ano, a minha opção, agendada de longa data, foi para a sessão que terá lugar na Biblioteca Municipal das Caldas da Rainha, promovida pela sua Comunidade de Leitores.
Teremos connosco Ary dos Santos e Jorge de Sena. Oportunidade sublime para deixar a arder uma boa quantidade de orelhas que andam bem a precisar de ser zurzidas!
A sonoridade poética das vagas atlânticas - com Ernesto Matos (fotografias) e Pedro Miranda Albuquerque (poemas), a próxima sessão das Noites com Poemas, na Biblioteca Municipal de Cascais, em São Domingos de Rana, terá lugar no próximo dia 19 de Março, pelas 21h30.
Tendo como pretexto o seu mais recente livro Suite Caboverdiana, os dois autores farão a sua abordagem à realidade do arquipélago de Cabo Verde, às suas gentes e sítios, que desdobraram em imagens e poemas...
Convite feito. A porta está aberta e eu lá vos espero.
O meu contributo a Cabo Verde:
ilhas dez de mil escravos arquipélago de bravos e viagens em busca de mil paragens miragens mil de sereias que nessas brancas areias tingem de esperança o anil
africana ou europeia rasa o mar essa maneira de ser ilhéu e partir ser crioulo no sentir e ter o céu p’ra vestir ao som duma coladeira duma morna feiticeira mas partir sempre partir
cuscuz xerém e cachupa gosto de peixe à garupa do feijão da mandioca que em nenhum mercado troca maior que seja a cidade
terra seca Cabo Verde fértil gente mata a sede a lonjura desse mar leva e deixa e traz sodade mas busca a alma em raízes de africanos matizes onde lhe nasce a vontade
e querer sair mas ficar por ter de ser ter de ser e o ter de ser de partir quando apetece ficar.
De uma reflexão que me chegou na caixa do correio, respigo uma ideia que deixo à consideração dos passantes, sobre a dimensão da «crise»:
Sabe-se que o plano de resgate aos bancos, só nos Estados Unidos, feito com o dinheiro dos contribuintes, ascende, numa primeira tranche, a 700.000 milhões de dólares (leia-se setecentos mil milhões de dólares).
Não contabilizemos os 500.000 milhões de dólares de segunda tranche, nem os incontáveis milhões de euros dos governos europeus às respectivas bancas.
A população do planeta ascende, actualmente, a 6.700 milhões (leia-se seis mil e setecentos milhões de habitantes).
Se dividirmos os 700.000 milhões de dólares pelos 6.700 milhões de habitantes, dá para se entregar a cada habitante, 104 milhões de dólares!
Não apenas a crise deixaria de existir, como cada habitante do planeta ficaria milionário...
Há algum erro neste raciocínio?
- Claro que há! Bastou cá ter chegado alguém (obrigado, Paulo Moura; eu devia estar a dormir...) que ainda sabe fazer contas, para se concluir que o resultado da divisão acima é... 104 dólares! Ora, por isso, já nem o sono me tiram...! É o que dá sermos tão crédulos em face das mensagens recebidas.
*
Em qualquer caso, por considerar relevante, sequencio esta entrada com o comentário à mesma feito pelo Jaime Latino Ferreira e o meu comentário ao comentário. Então, cá vai:
SER MILIONÁRIO
Partindo do princípio que essas contas que te enviaram estariam bem feitas e distribuindo-se, então, esses milhões por cada habitante do planeta deixando colapsar o sistema financeiro, onde guardaria cada qual os seus milhões, debaixo do colchão!?
Ou, dito de outra maneira, deixando de funcionar o sistema financeiro, que valor teriam esses milhões nas mãos de cada qual!?
Algum, nenhum, assim assim!?
Isto para dizer que: É prudente, nestas complexas questões, não se cair em demagogias.
O sistema financeiro tem um importante papel redistributivo e universalizador do dinheiro, o que resta é saber qual, em que sentido e com que objectivos!
Imagina que passava só a existir dinheiro de plástico que não existe, aliás, sem o sistema financeiro e que passava a prevalecer, como regulador e num parâmetro universal também, não o crédito mas sim o débito, num patamar máximo de taxa zero e onde a deflacção deixasse de ser um tabú!?
Ter-me-ei feito entender!?
- Ao que eu comentei:
Claro que sim. Nem a minha ingenuidade chegaria a tanto...
Mas a questão reflexiva proposta dirige-se, apenas, ao paradigma para que nos fizemos evoluir.
O simples facto de podermos presumir que, no concerto do mundo, em pé de igualdade com cada ser humano vivente, cada um representa um valor X, ao qual terá direito de acesso em caso de necessidade extrema... bem, isso levar-nos-ia muito longe no quantificar dos Direitos do Homem.
Por outro lado, sendo o dinheiro que tudo regula, interessa a esse mesmo «dinheiro» a hipocrisia - vista nesta perspectiva - de que a vida do ser humano «não tem valor». Hipocrisia, porque, afinal, para cada um de nós, na perspectiva do capital, ela está plenamente quantificada.
E esse valor relativizado equivale a dizer que não tem valor nenhum, como qualquer declaração de guerra bastamente prova.
Valha-nos, então, a relativização da hipocrisia, até que consigamos evoluir para outro paradigmático patamar civilizacional - o que não se conseguirá sem profundíssimas convulsões, como todos sabemos ou presumimos saber.
sou de um tempo em que os dentes nos cresciam tortos em que sabíamos de cor os nomes dos nossos mortos e as janelas eram como as pessoas com-portadas
sou de um tempo em que os dentes da ditadura tinham a cor azul do lápis da censura e alguns com sorte e de tamancos iam se podiam sentar-se numa escola nalguns bancos
iam de bibe alguns e algum deslize tinha o prémio cruel de uma reguada que lavrava na alma cicatrizes e no futuro a amargura desalmada
sou de um tempo de haver carros de bois e do irmos p’rà guerra só depois de sabermos tanta vida por viver e sabê-la ser assim desperdiçada
sou de um tempo de querer ter pai e mãe e outras coisas mais simples que também de tão simples até ninguém maltratavam
desse tempo eu sou mas por acaso reparando no calendário que eu trago no aparelho modernaço onde afago o dia inteiro e sem o qual mal sobrevivo eu reparo – observo – admiro que eu sou do tempo todo aquele que eu vivo e que estou de corpo e alma aqui contigo à procura de outro tempo meu amigo
- extracto de uma trilogia poética ainda em fase de conclusão, de minha autoria, Jorge Castro.
Num dia em que me deram razão, numa das muitas lutas em que me vejo envolvido, deixo-vos com Mário Viegas, dando corpo supinamente à Cantiga dos Ais, do poeta Mendes de Carvalho.
Não há pior sinal do que nos darem razão. Por nós terá já passado, nessa altura, um mar de chatices e, se tivermos sorte, já nada haverá a fazer ao prejuízo. Daí os ais... Ao menos, por quem saiba soltá-los!
Dizia-nos o mestre Lagoa Henriques que uma escultura é um local de convívio. Outro escultor, Francisco Simões, recomenda-nos que toquemos as suas esculturas, como forma de lhes apreendermos a dimensão, com maior abrangência pela cumplicidade dos sentidos.
Convive-se, pois, muito melhor e com outra amplitude, quando o interlocutor é conhecido.
Em homenagem ao cante alentejano, aos homens e mulheres que lhe dão corpo e voz, um coro que se confunde com as árvores da planura alentejana, em forma e intenção, e que nos acolhem num momento de paregem e reconforto.
dos magalhães aos professores achincalhados eu canto esta aleivosa pepineira em que vamos decaindo de maneira que mal damos por nós já de tão sedados e nem se salva Courbet na velha Braga censurado por falhados pais da tanga que perdidos neste mundo de fuçanga decidiram também dar corpo a tal praga razão tinha Junqueiro aos hipopótamos gritando ó Humanidade enxota-mos!
bruta e fera a dita e com tal sorte muito mais do que vivermos vegetamos e no pântano de enganos lá vogamos esperando por reformas e p’la morte assim querem ou esperam - determinam os fautores da desgraça inadiável espiral - fatalista e infindável - que ao comum cidadão a esperança minam e mal se ouve um só que em bravo dichote aconselhe espantar tal corja a trote
fica o voto – limiar de consciência vil resquício de um passado de firmezas e de lutas – de combates – de incertezas onde o Homem era o centro da ciência esse voto tão certinho e lapidar que aconchega a vontade entorpecida que amortalha a coragem mal-ferida mas que ao mesmo tempo nos impede o mar esse voto que devotos nós lançamos sem sequer apurar por que votamos
liberdade – quem a tem chama-lhe sua igualdade – de ter cada um bastante ser fraterno um destino em cada instante de trazer a poesia ao rés da rua ver no outro não o rival mas o amigo saber ser solidário e altruísta coisas vãs mas que foram a conquista que nos fez ver para além do triste umbigo e fazer de cada um estar mais ufano de ser inteiro – solidário – e ser humano.